O Corpo Jubiloso: A carne selvagem
“Limitar
a beleza e o valor do corpo a qualquer coisa inferior a essa magnificência é
forçar o corpo a viver sem seu espírito de direito, sem sua forma legítima, seu
direito ao regozijo. Ser considerada feia ou inaceitável porque a nossa beleza
está fora da moda atual fere profundamente a alegria natural que pertence à
natureza selvagem.”
“É claro
que a natureza instintiva das mulheres valoriza o corpo e o espírito muito mais
por capacidade e vitalidade, sensibilidade e resistência do que por qualquer
avaliação da aparência. Esse ponto de vista não pretende descartar aquilo que
seja considerado belo por qualquer segmento da cultura, mas, sim, traçar um
círculo mais amplo que inclua todas as formas de beleza, forma e função”.
História: La Mariposa,
a Mulher-Borboleta (A Dança da Borboleta)
Para falar sobre o poder do corpo de um outro ângulo, tenho que lhes
contar uma história, uma verdadeira e bem longa.
Há anos, os turistas atravessam barulhentos o enorme deserto
norte-americano, cobrindo às pressas o “circulo espiritual”: Monument Valley,
Chaco Canyon, Mesa Verde, Kayenta, Keams Canyon, Painted Desert e Canyon de
Chelly. Eles espiam pela pelve do Mother Grand Canyon, abanam a cabeça,
encolhem os ombros e voltam correndo para casa, só para no verão seguinte
atravessar de novo o deserto, olhando, olhando um pouco mais, espiando,
observando um pouco mais. Subjacente a tudo isso está a mesma fome de
experiência espiritual que os seres humanos sentiram desde o inicio dos tempos.
Em alguns casos, porém, essa fome é exarcebada pois muitas pessoas perderam o
contato com seus antepassados. É muito comum que elas não saibam os nomes dos
que vieram antes dos seus avós. Perderam, em especial, as histórias das suas famílias.
Em termos espirituais, essa situação provoca tristeza... e fome. Por isso,
muitos estão tentando recriar algo de importante para o bem da alma.
Há anos, os turistas também vêm a Puyé, uma grande mesa poeirenta no “fim
do mundo”, no Novo México. Aqui os Anasazi, os antigos, costumavam se chamar de
uma mesa para outra. Diz-se que na pré-história foi o mar que entalhou os
milhares de bocas e olhos, sorridentes, debochados e queixosos, nas paredes
rochosas daquele lugar. Os descendentes dos navajos, dos jicarilla apaches, dos
utes do sul, dos hopis, zunis, Santa Clara, Santa Domingo, Laguna, Picuris,
Tesuque, de todas essas tribos do deserto, reúnem-se aqui. É aqui que eles
conseguem voltar, através da dança, a pinheiros nativos, aos cervos, às águias e
Katsinas, espíritos poderosos.
Para aqui também vêm visitantes, alguns dos quais estão privados dos
seus mitos genealógicos, isolados da sua placenta espiritual. Eles também já se
esqueceram dos seus deuses ancestrais. Por isso, vêm observar os que não se
esqueceram. A estrada que sobre até Puyé foi construída para cascos de cavalos
e para os mocassins. Com o tempo, no entanto, os automóveis foram ficando mais
potentes, e agora tanto os habitantes do local quanto os visitantes chegam em
todo tipo de carro, picape, caminhonete e conversível. Os veículos sobem pela
estrada, guinchando e soltando fumaça, num desfile lento e empoeirado. Todos
estacionam trochimochi, de qualquer jeito, no terreno irregular. Antes do
meio-dia, a borá da mesa dá a impressão de um engavetamento de mil carros. Há
quem estacione bem junto a pés de malva-rosa de um metro e oitenta de altura,
pensando que basta afastar os galhos da planta para sair do carro. Só que esses
pés de malva-rosa são centenários e parecem feitos de ferro. Quem estaciona
junto a eles fica preso dentro do carro. Antes mesmo do meio-dia, o sol é uma
fornalha acesa. Todos caminham pesadamente com sapatos que queimam os pés,
carregando guarda-chuvas caso chova (o que vai acontecer) e, se forem turistas,
talvez uma máquina fotográfica (se lhes for permitido) e latinhas de filme
penduradas no pescoço como se fossem fieras de alho.
Os turistas vêm com todo tipo de expectativa, desde as sagradas até as
profanas. Vêm ver se algo que nem todos conseguirão ver, um exemplo do mais
selvagem dentre os selvagens, um espírito vivo, La Mariposa, a
Mulher-Borboleta.
O último evento é a Dança da Borboleta. Todos aguardam com imenso prazer
a tal dança de uma só pessoa. Ela é apresentada por uma mulher, e que mulher!
Quando o sol começa a se pôr, aparece um velho resplandecente no seu
traja de cor turquesa que deve pesar uns vinte quilos. Com os alto-falantes guinchando como um pintinho
que detectou um falcão, ele sussurra no microfone de cromo da década de 1930, “E
nossa próxima atração vai ser a Dança da Borboleta”. Ele se afasta arrastando
no chão e bainha de jeans.
Ao contrário de uma apresentação de balé, na qual o numero é anunciado,
as cortinas se abrem e os bailarinos aparecem, inseguros, aqui em Puyé, como em
outras danças tribais, o anúncio formal da dança pode preceder a aparição da
dançarina em desde vinte minutos a uma eternidade. Onde está ela? Arrumando seu
trailer, quem sabe. Aqui são comuns temperaturas superiores a 40 graus
centígrados, e são necessários retoques de última hora na maquiagem do corpo
desmanchada pelo suor. Se um cinto da dança, que pertenceu ao avô da dançarina,
se partir no caminho até a área, ela simplesmente não faria sua apresentação
pois o espírito do cinto precisaria descansar. Os dançarinos também podem se
atrasar porque está tocando uma ótima musica na “Hora índia de Tony Lujan” na
rádio Taos, KKIT (em homenagem a Kit Carson). Pode acontecer de um dançarino
não ter ouvido o alto-falante e precisar falar com todos os parentes no caminho
até a arena, e com a maior certeza deve parar para que seus sobrinhos e
sobrinas deem uma boa olhada. Como as crianças ficam assombradas de ver um imponente
espírito Katsina que desperta a suspeita de se parecer, pelo menos um pouco,
com tio Tomás ou uma participante da dança do milho que dá a impressão de ser
mesmo muito parecida com tia Yazie. Afinal, existe a possibilidade sempre
presente de que o dançarino ainda esteka lá na rodovia de Tesuque, com as
pernas balançando da goela escancarada de uma picape enquanto o escapamento
polui o ar por mais de quilômetros a favor do vento.
Enquando esperam a Dança da Borboleta num estado de agitação irrefreada,
todos tagarelam acerca das virgens das borboletas e sobre a beleza das meninas
zunis que dançaram num antigo traje vermelho e preto, de um ombro só, e com
vibrantes círculos cor-de-rosa pintados nas faces. Elogiam, também, os rapazes
da dança do cervo que se apresentaram com ganhos de pinheiro amarrados aos
braços e às pernas.
O tempo passa.
Passa.
E passa.
As pessoas sacodem moedas nos bolsos. Chupam os dentes. Os turistas
ficam impacientes para ver essa maravilhosa bailarina borboleta.
Inesperadamente, já que todos estão pra lá de entediados, os braços do tocados
de tambor começam a fazer soar o sagrado ritmo da borboleta, e os cantores o
coiro começam a grtar para os deuses com toda a alma.
Para os turistas, uma borboleta é algo delicado. “Ah, a frágil beleza”,
sonham eles. Por isso, ficam necessariamente abalados quando durge aos saltos
Maria Lujan. E ela é grande, grande mesmo, como a Vênus de Willendorf, como a
Mãe dos Dias, como a mulher heroica de Diego Rivera, que construiu a Cidade do
México com um simples voltear do seu pulso.
E Maria Lujan é velha, muitíssimo velha, como uma mulher que voltou do
pó; velha como um rio velho; velha como os pinheiros nos pontos mais altos das
montanhas. Um dos seus ombros está nu. Sua manta vermelha e preta, um
vestido-saco, pula de um lado para o outro com ela dentro. Seu corpo pesado e
suas pernas muito finas fazem com que ela lembre uma aranha saltitante envolta
numa pamonha. Ela salta num pé só, e depois no outro. Ela abana seu leque de
penas por toda parte. Ela é A Borboleta que chegou para dar forças aos fracos.
Ela é o que a maioria considera não ser forte; a velhice, a borboleta, o
feminino.
O cabelo da Donzela Borboleta cai até o chão. Ele é denso como dez
feixes de milho e é de um cinza de pedra. E ela usa asas de borboleta do tipo
que se vê nas crianças que fazem papel de anjos em peças de escola. Seus quadris
são como duas enormes cestas balouçantes e a parte carnuda do alto das nádegas
é larga o suficiente para carregar duas crianças.
Ela salta, salta e salta, não como um coelho, mas em passinhos que
ecoam.
- Estou aqui, aqui, aqui...
-Estou aqui, aqui, aqui...
- Acordem. Acordem. Acordem!
Ela abana o leque para cima e para baixo, salpicando a terra e o povo da
terra com o espírito polinizador da borboleta. Suas pulseiras de conchas
chocalham como cascavéis, suas ligas provisas de sinos produzem o som da chuva.
Sua silhueta com sua grande barriga e pernas pequenas dança de um lado do
circulo para o outro. Seus pés deixam pequenos remoinhos de poeira.
As tribos ficam reverentes, envolvidas. No entanto, alguns artistas
olham uns para os outros, perguntando, aos sussurros, de aquilo é a Donzela
Borboleta.
Eles estão perplexos, alguns até mesmo decepcionados. Parece não mais
lembrar de que o mundo dos espíritos é um lugar em que os lobos são mulheres,
os ursos são maridos e as velhas dimensões avantajadas são borboletas.
É, é apropriado que a Mulher Selvagem/Mulher-Borboleta seja velha e
corpulenta, pois ela traz o mundo dos trovoes num seio, e o mundo subterrâneo no
outro. Suas costas são a curva do planeta Terra com todos os seus frutos,
alimentos e animais. Na sua nuca, ela traz o sol nascente e poente. Sua coxa
esquerda guarda todos os pinheiros; sua coxa direita, todas as lobas do mundo.
Em seu ventre estão todos os bebês que um dia ainda irão nascer.
A Donzela Borboleta é a força feminina
fertilizadora. Ao transportar o pólen de um lugar para o outro, ela fecunda por
cruzamento, da mesma forma que os arquétipos fertilizam o mundo concreto. Ela é
o centro. Ela aproxima os opostos ao tirar um pouco daqui e levá-lo para lá. A
transformação não é nem um pouco mais complicada que isso. É essa a sua lição.
É assim que a borboleta faz. É assim que a alma atua.
A Mulher-Borboleta corrige a ideia equivocada de
que a transformação é só para os torturados, para os santos, ou apenas para os
tremendamente fortes. O self não precisa mover montanhas para se transformar.
Um pouco basta. Um pouco vai longe. Um pouco muda muita coisa. A força
fertilizadora substitui a movimentação de montanhas.
A Donzela Borboleta poliniza as almas da terra. É mais fácil do que vocês
pensam, diz ela. Ela abana seu leque de penas e saltita porque está derramando
pólen espiritual sobre todos os presentes, índios norte-americanos,
criancinhas, turistas, todo mundo. Ela está usando seus corpo inteiro como uma
benção, esse seu corpo velho, frágil, grande, manchado, de pernas curtas e
quase sem pescoço. Essa é a mulher vinculada à natureza selvagem, a intérprete
da força instintiva, fertilizante, a que conserta, a que acorda antigas ideias.
Ela é La Voz Mitológica. Ela é a encarnação da Mulher Selvagem.
A intérprete da dança da borboleta tem de ser velha por representar a
alma que é velha. Ela é larga das coxas e ancas por carregar tantas coisas. Seu
cabelo grisalho garante que ela não precisa mais obedecer a tabus ligados ao
contato com outras pessoas. É permitido que ela toque a todos: meninos, bebês,
homens, mulheres, meninas, os idosos, os enfermos, os mortos. A
Mulher-Borboleta pode tocar qualquer pessoa. É seu privilégio de tocar a todos,
afinal. Esse é o seu poder. Seu corpo é o de La Mariposa, a Borboleta.”
“O corpo
é como um planeta. Ele é uma terra por si só. Como qualquer paisagem, ele é
vulnerável ao excesso de construções, a ser retalhado em lotes, e se ver
isolado, esgotado e alijado de seu poder. A mulher mais selvagem não será
facilmente influenciada por tentativas de urbanização. Para ela, as questões
não são de forma, mas de sensação. O seio em todos os seus formatos tem função
de sentir e de amamentar. Ele amamenta? Ele é sensível? Então é um seio bom.
Já os
quadris são largos por um motivo. Dentro deles há um berço de marfim acetinado
para a nova vida. Os quadris da mulher são estabilizadores para o corpo acima e
abaixo deles. Eles são portais, são uma almofadinha opulenta, suportes para as
mãos no amor, lugar para as crianças se esconderem. As pernas foram feitas para
nos levar, às vezes para nos empurrar. Elas são as roldanas que nos ajudam a
subir; são o anillo, o anel que abraça o amado. Elas não podem ser criticadas
por serem muito isso ou muito aquilo. Elas simplesmente são.
No corpo
não existe nada que “devesse ser” de algum jeito. A questão não está no tamanho
no formato ou na idade, nem mesmo no fato de ter tudo aos pares, pois algumas
pessoas não têm. A questão selvagem está em saber se esse corpo sente, se ele
tem um vínculo adequado com o prazer, com o coração, com a alma, com o mundo
selvagem. Ele tem alegria, felicidade? Ele consegue ao seu modo se movimentar,
dançar, gingar, balançar, investir? É só isso que importa”.
“Há um
verso em “for colores girls who have considered suicide/when the rainbow is
enough”, de Ntozake Shange. Na peça, a mulher de roxo fala depois de lutar para
lidar com todos os aspectos físicos e psíquicos de si mesma que a cultura
ignora ou deprecia. Ela resume com estas palavras sábias e pacíficas: here is
what I have... poems, big thighs, lil tits & so much Love. (é isso que eu
tenho... poemas, coxas grossas, peito pequeno e tanto amor).
É esse o
poder do corpo, o nosso poder, o poder da Mulher Selvagem. Nos mitos e contos
de fadas, as divindades e outros espíritos poderosos testam o coração dos seres
humanos ao aparecer sob diversas formas que disfarçam sua natureza divina.
Aparecem usando mantos, farrapos, faixas de prata ou com os pés enlameados.
Aparecem com a pele morena como madeira escura, ou em escamas feitas de pétalas
de rosas, como uma frágil criança, como uma velha de uma amarelo-esverdeado,
com um homem que não sabe falar ou como um animal que sabe. Os grandes poderes
estão querendo descobrir se os seres humanos já aprenderam a reconhecer a
grandeza da alma em todas as variações.
A Mulher
Selvagem aparece em muitos tamanhos, formas, cores e condições. Mantenha-se
alerta para poder reconhecer a alma selvagem em todos os seus inúmeros
disfarces”.*
*Texto retirado do livro: Mulheres que correm com os Lobos - Clarissa Pinkola Estes
Questionário
e Reflexões:
1)
Qual é a sua relação com seu corpo físico?
2)
O que você mais gosta em si? E o que mais
desgosta?
3)
Qual é a sua beleza? Você a reconhece?
4)
O que você valoriza e exibe? O que você
disfarça?
5)
Você tem fome do que?
6)
Você se assume como é?
7)
O que você herdou dos seus antepassados? (formas, cores, beleza...)
8)
Como você lida com a estética e o padrão
ocidental dos dias atuais?
9)
O que podemos fazer contra essa cultura que
nos deprecia nos enjaula e nos rotula?
Com carinho,
Ana K.