quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Vou te contar..mesmo que ...




Andrés Felipe e eu, Luciana, possuímos uma herança que nem todos na minha família manifestam ter, e que eu sinceramente se escolha existisse, não desejaria para ninguém; essa herança se chama Osteogênese imperfeita (OI), comummente conhecida como ossos de vidro, ou de cristal.
Assim sendo nossos ossos são frágeis, os dele mais do que os meus, meu nível é 1, o dele é 4, então eu sofri em minha infância 5 ou 4 fraturas, e ele somente neste semestre 6... As fraturas são completas, ou seja partem de lado a lado, o que causa uma dor inimaginável.
Os ciclos de fraturas, gesso, recuperação, duram até a idade adolescente, quando o organismo graças aos hormônios, parece endurecer perante essa patologia terrível.
Até lá ou a pessoa fica reclusa, quieta como em bola de cristal, intocada e solitária, ou segue em frente com mais de mil "nãos" e cuidados, criando consciência de forma temprana quanto à sua fragilidade e impossibilidade em fazer coisas corriqueiras como correr, pular, jogar bola, montar a cavalo...Somente mantendo atividades que não exijam contato físico.
Aí vem a dor, que ultrapassa a física, por que a criança é isso, criança, e tem necessidades impetuosas em ser livre, em viver, experimentar...e essas experiências se tornam limitadas, escassas e pobres.
Não há cura, somente tratamento de prevenção e alívio, tratamento químico chamado "Infusão de Pamidronato dissódico " que visa permitir que o organismo absorva o cálcio que nele existe, e colágeno, e que não se limita a uma aplicação, mas que irá se repetir a cada 4 meses ao longo de 10 anos...
Uma vida, uma vida de idas e vindas, de dor, de medo, e não estou exagerando, pois quem me conhece sabe que sou dura, fria e analítica ao extremo, dura, e quiçá pudera ser diferente sem essa doença, mas aprendi de pequena a não ter pena de mim, a me virar como podia, a ser forte, a não potencializar a dor, e resistir.
Mas agora, ao ver meu filho em situação pior do que a minha, a dureza se dilui, e tenho medo, por que não estou acostumada a ser frágil, (ironia certo? ) não aprendi a mostrar essa faceta, a da fragilidade emocional, por que fui condicionada a não incomodar, a não fazer drama, a não sentir dor.
Mas ele, ele me fez experimentar o choro, ao ler frases de apoio, ao ouvir vozes de rostos nunca vistos, que me acalentam e dão ánimo, a chorar. Aprendi a chorar agora aos 37 anos.
Este tratamento não existe em São Luis-MA, ainda que aqui haja o Sarah, e suas lindas e grandes instalações, nem no Sarah de BSB, ainda que lá apenas uma pessoa possa receber esse tratamento, a 14 anos, mas por motivos nunca desvendados somente essa pessoa tem acesso a ele, lá.
Então partimos, sim partimos eu e ele, em busca desse pamidronato, e fomos à Brasília, por que lá é também centro de referência dessa patologia, do seu tratamento, no HUB, hospital público, sim, mas que em tese devia ser isso mesmo "Centro de Referência", mas não é.
Escolhemos BSB, por que lá mora a nossa família, a paterna e a materna de Felipe, e por que supomos que sendo a capital do país tudo de bom haveria lá.
Mas não, e por isso, eu e ele, passamos o inferno, ainda que eu não acredite em infernos, nem ele, mas se algo é infernal na concepção do que se entende por inferno, é lá.
Uma das possíveis reações ao medicamento seria, em tese muito remota, uma convulsão, mas isso me foi dito, era hipótese, e caso ocorresse haveria uma estrutura e equipe "especial" para conter isso, e cuidar do meu filho.
Não foi assim. Teve febre de mais de 40 graus. Teve convulsão por isso, e não havia nem equipe nem estrutura. O quarto é mais simples que o mais simples, sequer possui oxímetro, somente o berço (sim um berço para uma criança de 4 anos) pequeno, uma cadeira, desmazelada, com molas saindo, onde eu passei 4 dias e 4 noites sentada, sem dormir, a bomba de infusão que controla o medicamento, e mais nada...
Nada mesmo, nem medicamento para febre havia, o que me foi comunicado gentilmente pela enfermeira da noite, acompanhado de um "use os lençóis e roupas dele para fazer compressas, por que também não temos compressas..."
E fui deixada sozinha, lá com ele em convulsão, ardendo em febre, sem celular, por que não pegava ali, nem os meus daqui, nem o que comprei lá. Apenas a mãe da outra criança que fazia o mesmo tratamento que Felipe, me ajudou, com palavras, por que ela estava na mesma condição que eu. E vi medo nos seus olhos. E pena.
Chamei meus deuses, sim, e creio com convicção foram eles os que fizeram tudo parar. Por que Felipe gritava, por não estar me vendo nem ouvindo. Assim ficou por mais de 40 minutos, sem me ver, nem me ouvir.
No dia seguinte, a médica responsável pelo "tratamento", ficou passada, assim disse, com tudo isso, não entendeu por que ninguém a chamou, e me disse que sim, havia antipirético, na farmácia, injetável...Por que não o usou a enfermeira? Tal vez por que o sofá em que dormia a impediu de descer e pegar...
No meu derradeiro dia lá, outra enfermeira, me pediu para "levar os medicamentos que fazem falta, mãe...da próxima vez que você vier...". Detalhe comida não pode entrar, mas medicamento devo levar.
Sim a alimentação. Outro inferno, não podemos levar nada comestível, e as refeições lá oferecidas são precárias. Felipe perdeu mais de 3 quilos em 4 dias. O que é muito em uma criança pequena. No último dia, nem falava mais, nem queria caminhar.
A higiene, bem é um conceito inexistente lá. O salão comunitário onde brincam, comem e descansam as crianças, é decorado com restos de comida das refeições, um chão curtido, móveis que nem sucata aceitaria, e baratas, e ratinhos noturnos.
Preciso do pamidronato dissódico, sim para ele viver melhor, para poder exercer o direito de ser criança.
Mas o país precisa de saúde, de boa saúde, de estrutura para remediar a falta de saúde.
De lugares dignos, sérios e humanizados.
Sim, é hospital público, mas não gratuito, por que caso não saibam, pagamos impostos, do momento em que nascemos ao que morremos.
Esperar um atendimento digno não é esperar um "favor" por que é serviço público.
Preciso do pamidronato dissódico, e também de paz de espírito, de conforto, de apoio, de segurança!
Vou em busca dele, do conteúdo caríssimo de cada ampola (entre 980 e 1.200 reais cada), vou em busca disso em outro lugar, por que pensar em repetir esse inferno, a cada 4 meses é sentença de morte...de morte mental, espiritual e física.
Então é isto, te contei mesmo que possa não interessar o que contei.
Mas hoje, me senti livre para contar isso, após um mês de catarse, após um mês de depressão, contei.

Luciana Onofre

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